sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Sopro


Fazia já bastante tempo que não havia quem a viesse visitar. Fazia bastante tempo, também, que não havia quem ela visitasse. Todos a quem conhecera, amados, odiados, queridos, indesejados, se haviam ido, soprados definitivamente da existência por aquela força milenar, incompreensível, irresistível e inevitável, a que a velha chamava de Fim. Mas ainda assim a velha prosseguia. A lenha que a mantinha aquecida era o passado. Seu combustível era uma mescla de lembranças e de saudades.
E pensava nisso quando se deu conta de que lá fora tudo era silêncio. O mundo emudecera.
Uma fumegante xícara de chá depositada sobre a mesa de centro permanecia intocada. As cortinas da janela da sala começaram a ser sopradas por uma delicada brisa; brisa esta que trazia para o interior da casa o cheiro puro e deliciosamente adocicado e primaveril das flores do jardim. A velha largou a bengala e ouviu o som oco e ecoante que o instrumento fez ao chocar-se contra o assoalho atapetado. Os ponteiros do relógio na parede pareceram mover-se cada vez mais vagarosamente, até cessarem por completo seu costumeiramente ininterruptível trabalhar.
A velha agarrou-se aos braços da poltrona como um náufrago se agarra aos destroços de um navio. Teve medo porque sabia que era o Fim que chegava. Mas, repentinamente, permitiu-se relaxar. Morreria sozinha, mas seu corpo poderia se despedir da vida, decompor-se, no silêncio, longe da tristeza dos vãos ritos funerários.
O que todos temiam era o mistério do Fim, mas essa brisa sobre ela já estava soprando.

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