segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

A cauda do diabo

 
Texto a ser publicado na antologia "Contos do outro mundo" da Câmara Brasileira de Jovens Escritores.
 
Naquela madrugada, Rafael foi desperto pelo irmão.
-Acorde Rafa! – Lucas chamava, cutucando desesperada e insistentemente o braço do adormecido – Por favor, acorde!
-O que há Luquinha? – Rafael encontrou o caçula dependurado sobre a sua cama do beliche.
-Um homem acabou de passar aqui!
Rafael estudou o quarto, cujos acessos estavam fechados. O cômodo era iluminado pela parca luz que ultrapassava a janela.
-Não tem ninguém, Lucas!
-Mas eu vi! Passou na minha frente – O menino pulou para cima da cama do irmão.
-E para onde ele foi?
-Entrou no quartinho das bugigangas.
Rafael saltou para fora do beliche e foi até o quartinho de bugigangas. Esse era o pequeno espaço onde os irmãos jogavam os seus pertences quando estavam com preguiça de organizá-los.
-Cuidado Rafa! – Sussurrou Lucas.
O rapaz abriu a porta do quartinho: Somente a bagunça orquestrada por seu irmão e ele.
-Nada! – Avisou Rafael voltando para o beliche – Você teve um pesadelo – E começou a empurrar Lucas para que o menino voltasse para a cama debaixo.
-Eu juro que vi! E ele tinha uma cauda!
-Uma cauda?
-Isso. Igual a um gato – Luquinha encolheu-se.
-Foi um pesadelo... Não passou disso...
-Posso dormir contigo essa noite, mano? Só esta noite.
-Pode sim – Respondeu Rafael após um longo e impaciente suspiro. Deixou que Lucas deitasse no canto da parede e ficou de olho no quarto. Podia até mesmo imaginar, tão nitidamente quanto na palpável realidade, um homem com cauda de gato passando sorrateiramente pelo quarto.
II
A sessão terror se dava todas as sextas-feiras, a partir da meia-noite, no canal 13. Rafael, como bom apreciador de filmes Trash, não perdia uma. Ligava a TV do quarto em baixo volume e mergulhava no universo sobrenatural. Lucas era proibido pelos pais de ver aos filmes, mas por vezes, fingindo dormir, os assistia em segredo. Rafael percebia, fingindo não notar.
Por volta de metade do primeiro filme apresentando, “A ilha da insônia”, Rafael, que havia deixado a porta do quarto aberta, viu, de relance, um vulto passar, rápido, pelo corredor. Levantou-se, com o coração aos pulos.
-O que se esconde aqui? – Perguntou o protagonista do filme.
Rafael irrompeu no corredor esperando se deparar com qualquer coisa: Uma vez mais nada viu. O vulto fora na direção da cozinha. Na certa era seu pai ou sua mãe.
-Mãe? Pai? – o rapaz chamou - Foi um de vocês que passou agora no corredor?
Do quarto do casal, com a porta fechada, veio a voz sonolenta e impaciente da mãe:
-Estamos dormindo Rafael!
-Eu... Vi alguém passar...
-Que alguém que nada! – Prosseguiu a mãe que nem sequer se deu ao trabalho de levantar – O sono e os filmes de terror estão te fazendo ver coisas! Vá se deitar!
O filho pediu desculpas e fechou a porta do quarto. Não queria mais ver o corredor.
-Seja o que for – um médico explicava ao mocinho do filme – não é humano.
Rafael desligou a TV e se deitou. No escuro, ouviu a voz do irmão:
-Você o viu, não é? Viu ele...
-O sono nos faz ver coisas, Luquinha. Boa noite.
Fosse o que fosse que passou pelo corredor, Rafael estava certo de que tinha uma... Cauda, que serpenteava no ar.
III
A Biblioteca Pública de Pinheiros estava praticamente vazia naquela manhã. A maioria das pessoas decerto preferia fazer pesquisas no conforto de seus lares, na Internet. Rafael bem que havia tentado, mas a busca fora infrutífera.
-Tem coisas que você só encontra nos livros – explicou a bibliotecária ao ouvir o relato de Rafael a respeito de suas dificuldades de pesquisa. Logo, ela voltava com três tomos, grandes, capa-dura, recheados de páginas amareladas – Esse material é para um trabalho de escola? – A mulher questionou desconfiada.
-É sim...
Foi no segundo livro, “Mitos e lendas demoníacas”, que, após longa procura, o rapaz encontrou a “criatura” que batia com o que seu irmão e ele tinham visto.
“Ajudantes de Satã, também conhecidos por Auxiliares de Lúcifer ou Caudas do Diabo. Segundo a lenda, entram em casas durante a noite para raptar crianças e carregá-las para os domínios infernais. Na ausência das crianças (a alegria dos pais), o demônio consegue chegar aos adultos.”
Acima do texto, a ilustração de um horrendo homem, quase esquelético, nu, curvado, unhas cumpridas, cabelos negros pelos ombros, e com uma cauda, semelhante à de um felino, felpuda, mas com um par de longos espinhos na ponta.
O rapaz fechou o livro e partiu para a escola.
IV
Chegando em casa, Rafael pensou muito a respeito de se deveria ou não contar aos pais a respeito das “visões” que Lucas e ele vinham tendo. Temendo que não o levassem a sério (e responsabilizassem os tão adorados filmes Trash), achou melhor não fazê-lo.
Quando se deitou, o preocupado e assustado rapaz imaginou que não conseguiria dormir. Era muito nítida, em sua mente, a gravura da cria infernal daquele livro. Para Rafael, o sono tardou, mas chegou.
Acordou com os berros do irmão.
-Mano! Socorro! – Debatia-se Luquinha enquanto a Cauda do diabo o arrastava em direção ao quartinho de bugigangas.
Rafael saltou do beliche e lançou-se contra a demoníaca criatura que, surpreendida pelo ataque, acabou largando Lucas.
Os pais, acordando com os gritos de Lucas e os ruídos do embate, tentavam, do corredor, entrar no quarto dos meninos, mas, para aumento do desespero paternal, a porta fora trancada pelo lado de dentro.
-Luquinha! Rafa! – A mãe estava histérica – O que está havendo?
Um grito, sobrenatural, infernal, se espalhou por toda a casa. Findado o eco, tudo o que restou foi o silêncio da madrugada.
Quando a porta finalmente foi arrombada, e as luzes acesas, os pais das crianças se viram diante da seguinte cena: O quarto todo revirado, Lucas, em um canto, encolhido no chão, chorando e, no outro lado, Rafael, ofegante, segurando o que parecia ser uma corda.
-Eu o impedi! – Rafael berrou – Ele fugiu... – apontou a porta entreaberta do quartinho de bugigangas – Mas arranquei a sua cauda!
Repentinamente, o prêmio da contenda, a cauda, virou uma cobra coral, se enroscou no braço de Rafael e o picou.
O garoto tombou.
         E a cauda do diabo saiu vitoriosa. 
 
 
 

 
 
 

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